Foi com grimpa de araucária e nó-de-pinho que o fogo dos
crematórios da Guerra do Contestado esteve aceso a todo vapor. A partir das
extremidades de um buraco feito no chão de terra era erguido um muro de taipa e
de pedra de mais ou menos um metro que funcionava como forno para queimar
corpos humanos. Ali eram jogadas não apenas as maiores vítimas da batalha que
completa 100 anos em 2012, os caboclos, mas também os militares que morreram na
chamada Guerra Santa (1912-1916). Esses fornos logicamente não chegaram a
queimar em igual quantidade aos usados pelo Holocausto, mas tinham também a
missão de mascarar a matança e evitar a putrefação dos corpos nos campos da
região.
Quem descobriu
esses crematórios foi o geógrafo e professor da Universidade Estadual de Londrina Nilson César
Fraga, em 2000, durante uma expedição exploratória, com seus alunos, na região
dos antigos enfrentamentos entre a população cabocla e as forças militares do
poder estadual e federal brasileiro, travados em áreas disputadas pelos estados
do Paraná e de Santa Catarina. “Não sabíamos dessas coisas tão violentas
naquele território”, afirma.
Os crematórios, pelo menos 12, ainda existem
nas terras do Contestado, segundo o geógrafo, e estão em propriedades privadas
sem a devida conservação e manutenção. É impossível quantificar os cremados
nesses fornos, até porque o número de mortes na batalha não é algo pacificado
entre pesquisadores: dizem que foram de 10 a 20 mil, mas o número poderia chegar a 30
mil. Fraga explica que a maior parte dos crematórios se encontra na cidade de
Lebon Régis (SC), numa localidade chamada Perdizinha, para onde a população
cabocla avançava nos meses finais do conflito. Mas há outros também perto de
Porto União (SC) e União da Vitória (PR).
Centenário
No dia 22 de
outubro deste ano se recorda o centenário do início da guerra do Contestado:
foi nessa data que o coronel João Gualberto e o monge José Maria foram mortos
na Batalha de Irani. O início da guerra, porém, assim como vários fatores que
envolvem o conflito, não são questões bem definidas. O historiador Everton
Carlos Crema, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná
(Fafi), explica que já havia conflitos de terra na região antes de 1912. Há
ainda outros historiadores que definem o início da guerra apenas com a formação
do ajuntamento dos devotos do monge, em Taquaruçu, em 1913.
Turmeiros
É justamente no
clima de 100 anos da guerra que diversos historiadores têm se debruçado sobre o
assunto para desvendar questões pontuais. Por causa dos relatórios deixados
pelo coronel Setembrino de Carvalho, nomeado pelo governo federal,
acreditava-se que quem havia construído a estrada de ferro na região seria
bandido e que esses “bandidos”, como descreve Setembrino, eram responsáveis por
encabeçar o movimento dos caboclos.
“Colocava-se
ainda que esses turmeiros teriam vindo do centro do Brasil. Na minha pesquisa
de doutorado, pude perceber que não era bem isso”, afirma Márcia Janete Espig,
autora do livro Personagens do Contestado: os turmeiros da estrada de Ferro São
Paulo - Rio Grande. Márcia conseguiu documentos que comprovam que quase todos
os turmeiros (quase 10 mil) deixaram a região antes mesmo de a guerra começar,
conforme terminavam os trabalhos.
Quem
perdeu foi o PR, não os donos de terra
O Paraná saiu
perdedor na Guerra do Contestado porque teve de abrir mão de uma grande área de
terras para Santa Catarina (todo o oeste catarinense). O acordo da delimitação
territorial foi assinado no fim do conflito, em 1916, a pedido do
presidente Venceslau Brás. A nova delimitação dividiu ao meio alguns
territórios, dando origem a cidades diferentes, como União da Vitória (PR) x
Porto União (SC) e Rio Negro (PR) x Mafra (SC).
Entretanto,
apesar de o Paraná ter sido derrotado no acordo, os fazendeiros paranaenses não
perderam nenhum pedaço de terra. No acordo do limite, uma cláusula dizia que,
mesmo nos territórios que estivessem sob nova jurisdição (a catarinense), se
houvesse dúvidas sobre a propriedade da terra, valeria o título que estivesse
em cartório paranaense, explica o historiador Paulo Pinheiro Machado, autor de
livros sobre a guerra, entre eles Lideranças do Contestado: a formação das
chefias caboclas.
Já os caboclos
foram certamente os mais prejudicados, porque, além de terem perdido a guerra física
(no final estavam esgotados e morrendo de fome por causa do cerco feito pela
Guarda Nacional), foram escorraçados de suas terras e tiveram ou de ir para
regiões mais distantes (montanhas e lugares de terras inférteis) ou voltaram
para as fazendas, mas sob a condição de peões. Poucos conseguiram voltar para
seus próprios sítios.
Lei
Vale lembrar que
o Brasil tinha uma lei de terras de 1850, mas ela beneficiava o acesso à
propriedade apenas por compra, herança ou doação, o que quer dizer que os
incentivos que existiam no Brasil (de que quem cultivasse a terra seria o
proprietário dela) não valiam no papel, porque os caboclos, por exemplo,
tomaram posse das terras do Contestado e as cultivaram, mas não conseguiram ter
a titularidade das propriedades.
“É óbvio que as
terras tinham donos. Eram dos caboclos, dos grupos miscigenados que viviam na
região. Mas como eles teriam condições de pagar um agrimensor para fazer a
legitimização da terra? Além disso, eram os coronéis da região que determinavam
quem seria o pároco, o delegado e o cartorário. Ou seja, o cartorário não iria
beneficiar os caboclos”, explica o historiador Everton Crema.
Disponível em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário