Na quarta-feira
(23), o jornal O Estado de S. Paulo coloca à disposição do público o conteúdo
digitalizado de seus 137 anos de história. Um dos destaques da reportagem que
anuncia o lançamento são artigos sobre a abolição da escravatura, ocorrida em
13 de maio de 1888 e comentada na edição publicada dois dias depois.
Por Luciano Martins Costa*
Coincidentemente, a mesma edição de 23 de maio de 2012, que
trata do resgate do acervo histórico do tradicional jornal paulista, traz
também uma notícia atual, segundo a qual a Câmara dos Deputados acaba de
aprovar uma proposta de Emenda Constitucional que determina a expropriação de
propriedades rurais e urbanas onde forem constatadas situações de trabalho
escravo.
O fato obriga a pensar em como construímos nossa trajetória como
país, como a imprensa registra cotidianamente essas mudanças e, sem grandes esforços,
suscita a célebre frase de Karl Marx segundo a qual "a História se repete
como farsa".
A aprovação da lei que pune proprietários de terras que tratam
os trabalhadores como escravos está em todas as edições dos jornais de
quarta-feira (23), mas é preciso alguma reflexão para observar que a decisão
imperial de 1888 não eliminou a servidão humana em território brasileiro.
Fiscalização insuficiente
Nesta segunda década do século 21, foi preciso reunir a Câmara
dos Deputados para determinar que os exploradores de seus semelhantes terão
suas terras expropriadas. E observe-se que 360 parlamentares votaram a favor da
medida, mas ainda houve 29 deputados votando contra.
Não foi difícil para os jornalistas que cobrem o Parlamento
identificar esses deputados que se opuseram à punição para os escravagistas da
"pós-modernidade". Os jornais explicam claramente que os votos
contrários e a tentativa de esvaziar a sessão foram obra da chamada bancada
ruralista, o mesmo grupo que se esforça para flexibilizar a legislação de
proteção do patrimônio ambiental e que também acaba de aprovar, numa
subcomissão da Câmara, uma proposta para liberar a compra de terras no Brasil
por estrangeiros, sem limite de extensão, bem como legalizar as terras já
adquiridas por investidores de outros países.
Esses representantes do atraso institucional impuseram todo tipo
de empecilho, exigindo, por exemplo, que fosse feita uma emenda ao Código Penal
para melhor definir o que seja trabalho escravo.
Interessante refletir em que, passados mais de 120 anos, o
perfil dos escravagistas se reproduz em seus sucessores, como se o fantasma do
atraso insistisse em assombrar o Brasil contemporâneo.
Atualmente, as violações à legislação trabalhista que configuram
condições degradantes, jornada excessiva e outras circunstâncias semelhantes à
escravidão estão descritas no artigo 149 do Código Penal e se repetem com muito
mais frequência do que julga o cidadão leitor de jornais.
A fiscalização não alcança nem uma fração das propriedades
rurais do país e, além disso, há outras formas de escravidão mais ou menos
toleradas, como a situação de adolescentes e jovens retiradas de pequenas
comunidades do interior e mantidas contra sua vontade em casas de prostituição.
A ilusão da modernidade
Também não custa lembrar que, em 28 de janeiro de 2004, três
auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados
em uma emboscada no município de Unaí, Minas Gerais, quando investigavam a
ocorrência de trabalho escravo em fazendas da região. Os supostos assassinos
estão presos, mas os quatro acusados como mandantes, indiciados, seguem livres.
Um deles é prefeito de Unaí, pelo PSDB.
A polícia comprovou a vinculação entre os assassinos e os
mandantes, como pagamento por meio de depósito bancário, confissão dos jagunços
e outras provas e evidências. Mas a Justiça tarda.
O acervo histórico do Estadão será sem dúvida um instrumento
valioso para quem deseja estudar o processo histórico da construção da
democracia brasileira. Talvez brotem desse conteúdo artigos e estudos
interessantes que nos ajudem a entender como certas práticas contrárias à ideia
de civilização se reproduzem pelos tempos afora.
A leitura diária dos jornais nem sempre provoca as reflexões
adequadas sobre essa passagem do tempo e, eventualmente, até mesmo o discurso
oficial nas páginas de opinião da imprensa induz a pensar que as forças do
retrocesso são muito mais poderosas do que imaginamos.
Um salto entre 1888 e 2012 pode nos convencer de que a
modernidade do Brasil é uma ilusão.
*Jornalista e escritor
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