quinta-feira, 19 de julho de 2012

Possibilidade para reescrever a história


Esculachos públicos, formação de comissões de investigação e até mesmo a condenação de um dos principais torturadores do período. Em todo o país, surgem iniciativas para resgatar a memória e cobrar justiça pelos crimes cometidos durante o período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985).
O principal fato do ano nesse sentido foi a instalação da Comissão Nacional da Verdade, que investigará violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos durante o período do regime civil-militar. Seu momento mais importante, até agora, ocorreu em 11 de junho, em São Paulo, quando seus integrantes se reuniram com cerca de 60 familiares de vítimas para uma primeira conversa.
Criada pelo decreto presidencial nº 7.727, a Comissão Nacional da Verdade é formada por José Carlos Dias (ex-ministro da Justiça), Gilson Dipp (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada criminalista), Cláudio Fonteles (ex-Procurador-Geral da República), Paulo Sérgio Pinheiro (diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José Cavalcante Filho (jurista).
O grupo tem se reunido todas as segundas e terças-feiras em Brasília, onde ainda discute como será o método de trabalho da Comissão.
Dentre os atributos da Comissão estarão a convocação de testemunhas para oitivas e a análise de documentos. Por isso, até o momento, segundo Rosa Maria Cardoso da Cunha, o trabalho dos integrantes da Comissão tem sido estabelecer contatos com autoridades que possam facilitar seu acesso a fontes e arquivos. Também estão previstas audiências públicas para que mais pessoas possam apresentar seus relatos.
Apesar de ter como atribuição investigar fatos ocorridos durante a ditadura civil-militar, Rosa adianta que a apuração abrangerá também o período anterior a 1964, quando ocorreu o golpe que derrubou o então presidente João Goulart. “É preciso buscar nesse período anterior uma explicação para as causas do golpe, que tipo de alianças surgiram entre militares e civis e até interesses estrangeiros, dos Estados Unidos muito especificamente”, explica. A apuração deve estender-se também até 1988, quando foi promulgada a nova Constituição.
A comissão terá dois anos para trabalhar e, ao final desse tempo, produzirá um relatório, que ficará disponível para o público. Ainda não está definido se o material apurado terá um arquivo próprio ou fará parte do Arquivo Nacional.
“É preciso que não haja somente uma memória que as vítimas cultivam, mas que haja registros desse período, com esclarecimentos do que aconteceu e também recomendações para que isso não se repita mais”, afirma Rosa.

Primeiro contato
Com os trabalhos ainda em seu início, parentes e vítimas se mostram cautelosos em falar sobre os rumos da Comissão. Entretanto, a primeira reunião teve um saldo positivo, segundo familiares ouvidos pelo Brasil de Fato. O ex-preso político e membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos Ivan Seixas destaca o ineditismo do encontro. “Pela primeira vez o conjunto das famílias estava sendo ouvido por alguma esfera do Estado”, diz.
Para a professora da Universidade de São Paulo (USP) Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, morto e desaparecido durante o regime, o mais importante foi a comissão ter deixado clara sua posição de que não há dois lados a serem investigados. “Todos concordaram que o que precisa se investigar é a violência do Estado”, relata.
Durante o encontro, familiares apresentaram uma carta, onde saudaram a instalação da Comissão da Verdade e reafirmaram suas principais reivindicações, como a localização dos restos mortais dos desaparecidos e a identificação dos responsáveis pelos crimes. “Nunca nos sentimos tão perto de as coisas acontecerem, mas depende de quanta autonomia e estrutura essa comissão vai ter para trabalhar”, analisa Vera. A próxima reunião da Comissão com os familiares está prevista para agosto, quando a Comissão Nacional anunciará seu plano de trabalho definido.
Auxílio
Um dos desafios da Comissão Nacional da Verdade será lidar com o volume de trabalho para um tempo reduzido de apuração em um território tão extenso quanto o do Brasil. Nesse sentido, ganham importância as comissões estaduais e municipais. Um exemplo é a Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Segundo seu presidente, o deputado Adriano Diogo (PT-SP), a Comissão Estadual já conseguiu um termo de cooperação para acessar os arquivos da Comissão Nacional de Anistia, que possui o registro de mais de 60 mil denúncias entre 1946 e 1988. O próximo passo agora, destaca o deputado, será tentar um termo de cooperação com a Comissão Nacional. “Estamos tentando fazer uma divisão de trabalho da responsabilidade e dos tempos”, diz.
Além de São Paulo, Pernambuco já instituiu sua Comissão da Verdade, e iniciativas semelhantes estão previstas para os estados do Rio de Janeiro, Santa Catarina e Espírito Santo, Pará e Goiás.
Para Vera Paiva, as contribuições das comissões locais deverão ajudar a Nacional a cumprir uma de suas mais difíceis tarefas, que será contabilizar a real quantidade total de mortos e desaparecidos. Segundo levantamento da Comissão da Anistia e da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, 457 pessoas estão na lista oficial de mortos e desaparecidos políticos. Um estudo do governo, porém, pode incluir na lista 370 novos nomes.
“Esse é um grande desafio, fazer uma pesquisa profunda nos lugares que não são de classe média porque quem sustentou os nomes e a história oral foram as pessoas que tinham recursos para fazer isso”, argumenta.
Justiça?
Se a Comissão tem sua importância em revelar as atrocidades do regime e seus autores, uma pergunta recorrente é como seus resultados poderão ser usados para punir os responsáveis pelos crimes. Em suas declarações, os membros da Comissão Nacional da Verdade têm feito questão de ressaltar que a Comissão não tem poder punitivo, e sim apenas de apurar o que ocorreu no período.
A expectativa, porém, é de que as investigações possam servir para dar base a futuras condenações. “Você não consegue condenar uma pessoa por matar outra se você não descobrir o motivo, o instrumento da morte, o local onde enterrou, as circunstâncias em que aconteceram”, expõe Ivan Seixas.
A opinião é compartilhada pelo jornalista Pedro Pomar, que teve familiares assassinados e presos durante a ditadura. Ele cita como exemplo o episódio do Atentado do Riocentro, em 1981, quando militares tentaram detonar uma bomba durante um show comemorativo ao Dia do Trabalhador. “Se a Comissão da Verdade avançar na apuração desse caso, pode servir de subsídio para que a Justiça julgue e puna os responsáveis”, afirma.
Rosa concorda que o trabalho da Comissão pode se o primeiro passo para Justiça. No entanto, a advogada garante que o diferencial será a mobilização da sociedade que deve exigir, por exemplo, a revisão da Lei de Anistia. “Não é a Comissão da Verdade, com sete membros e com o trabalho que ela fizer, que vai determinar isso. É um movimento muito mais amplo de opinião pública”, assegura.
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