Esculachos públicos, formação de
comissões de investigação e até mesmo a condenação de um dos principais torturadores do
período. Em todo o país, surgem iniciativas para resgatar a memória
e cobrar justiça pelos crimes cometidos durante o período da ditadura
civil-militar no Brasil (1964-1985).
O principal fato do ano nesse sentido foi
a instalação da Comissão Nacional da Verdade, que investigará violações de direitos
humanos cometidas por agentes públicos durante o período do regime
civil-militar. Seu momento mais importante, até agora, ocorreu em 11 de junho,
em São Paulo, quando seus integrantes se reuniram com cerca de 60 familiares de
vítimas para uma primeira conversa.
Criada pelo decreto presidencial nº 7.727, a Comissão Nacional
da Verdade é formada por José Carlos Dias (ex-ministro da Justiça), Gilson Dipp
(ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa Maria Cardoso da Cunha
(advogada criminalista), Cláudio Fonteles (ex-Procurador-Geral da República),
Paulo Sérgio Pinheiro (diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José
Cavalcante Filho (jurista).
O grupo tem se reunido todas as segundas
e terças-feiras em Brasília, onde ainda discute como será o método de trabalho da
Comissão.
Dentre os atributos da Comissão estarão a
convocação de testemunhas para oitivas e a análise de documentos. Por isso, até
o momento, segundo Rosa Maria Cardoso da Cunha, o trabalho dos integrantes da
Comissão tem sido estabelecer contatos com autoridades que possam facilitar seu
acesso a fontes e arquivos. Também estão previstas audiências públicas para que
mais pessoas possam apresentar seus relatos.
Apesar de ter como atribuição investigar
fatos ocorridos durante a ditadura civil-militar, Rosa adianta que a apuração
abrangerá também o período anterior a 1964, quando ocorreu o golpe que derrubou
o então presidente João Goulart. “É preciso buscar nesse período anterior uma
explicação para as causas do golpe, que tipo de alianças surgiram entre
militares e civis e até interesses estrangeiros, dos Estados Unidos muito
especificamente”, explica. A apuração deve estender-se também até 1988, quando
foi promulgada a nova Constituição.
A comissão terá dois anos para trabalhar e,
ao final desse tempo, produzirá um relatório, que ficará disponível para o
público. Ainda não está definido se o material apurado terá um arquivo próprio
ou fará parte do Arquivo Nacional.
“É preciso que não haja somente uma
memória que as vítimas cultivam, mas que haja registros desse período, com
esclarecimentos do que aconteceu e também recomendações para que isso não se
repita mais”, afirma Rosa.
Primeiro contato
Com os trabalhos ainda em seu início,
parentes e vítimas se mostram cautelosos em falar sobre os rumos da Comissão.
Entretanto, a primeira reunião teve um saldo positivo, segundo familiares
ouvidos pelo Brasil de Fato. O ex-preso político e membro da Comissão de
Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos Ivan Seixas destaca o
ineditismo do encontro. “Pela primeira vez o conjunto das famílias estava sendo
ouvido por alguma esfera do Estado”, diz.
Para a professora da Universidade de São
Paulo (USP) Vera Paiva, filha de Rubens Paiva, morto e desaparecido durante o
regime, o mais importante foi a comissão ter deixado clara sua posição de que
não há dois lados a serem investigados. “Todos concordaram que o que precisa se
investigar é a violência do Estado”, relata.
Durante o encontro, familiares
apresentaram uma carta, onde saudaram a instalação da Comissão da Verdade e
reafirmaram suas principais reivindicações, como a localização dos restos
mortais dos desaparecidos e a identificação dos responsáveis pelos crimes.
“Nunca nos sentimos tão perto de as coisas acontecerem, mas depende de quanta
autonomia e estrutura essa comissão vai ter para trabalhar”, analisa Vera. A
próxima reunião da Comissão com os familiares está prevista para agosto, quando
a Comissão Nacional anunciará seu plano de trabalho definido.
Auxílio
Um dos desafios da Comissão Nacional da
Verdade será lidar com o volume de trabalho para um tempo reduzido de apuração
em um território tão extenso quanto o do Brasil. Nesse sentido, ganham
importância as comissões estaduais e municipais. Um exemplo é a Comissão
Estadual da Verdade “Rubens Paiva” da Assembleia Legislativa do Estado de São
Paulo (Alesp). Segundo seu presidente, o deputado Adriano Diogo (PT-SP), a
Comissão Estadual já conseguiu um termo de cooperação para acessar os arquivos
da Comissão Nacional de Anistia, que possui o registro de mais de 60 mil
denúncias entre 1946 e 1988. O próximo passo agora, destaca o deputado, será
tentar um termo de cooperação com a Comissão Nacional. “Estamos tentando fazer
uma divisão de trabalho da responsabilidade e dos tempos”, diz.
Além de São Paulo, Pernambuco já
instituiu sua Comissão da Verdade, e iniciativas semelhantes estão previstas
para os estados do Rio de Janeiro, Santa Catarina e Espírito Santo, Pará e
Goiás.
Para Vera Paiva, as contribuições das
comissões locais deverão ajudar a Nacional a cumprir uma de suas mais difíceis
tarefas, que será contabilizar a real quantidade total de mortos e
desaparecidos. Segundo levantamento da Comissão da Anistia e da Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, 457 pessoas estão na lista
oficial de mortos e desaparecidos políticos. Um estudo do governo, porém, pode
incluir na lista 370 novos nomes.
“Esse é um grande desafio, fazer uma
pesquisa profunda nos lugares que não são de classe média porque quem sustentou
os nomes e a história oral foram as pessoas que tinham recursos para fazer
isso”, argumenta.
Justiça?
Se a Comissão tem sua importância em
revelar as atrocidades do regime e seus autores, uma pergunta recorrente é como
seus resultados poderão ser usados para punir os responsáveis pelos crimes. Em
suas declarações, os membros da Comissão Nacional da Verdade têm feito questão
de ressaltar que a Comissão não tem poder punitivo, e sim apenas de apurar o
que ocorreu no período.
A expectativa, porém, é de que as
investigações possam servir para dar base a futuras condenações. “Você não
consegue condenar uma pessoa por matar outra se você não descobrir o motivo, o
instrumento da morte, o local onde enterrou, as circunstâncias em que
aconteceram”, expõe Ivan Seixas.
A opinião é compartilhada pelo jornalista
Pedro Pomar, que teve familiares assassinados e presos durante a ditadura. Ele
cita como exemplo o episódio do Atentado do Riocentro, em 1981, quando
militares tentaram detonar uma bomba durante um show comemorativo ao Dia do
Trabalhador. “Se a Comissão da Verdade avançar na apuração desse caso, pode
servir de subsídio para que a Justiça julgue e puna os responsáveis”, afirma.
Rosa concorda que o trabalho da Comissão
pode se o primeiro passo para Justiça. No entanto, a advogada garante que o
diferencial será a mobilização da sociedade que deve exigir, por exemplo, a
revisão da Lei de Anistia. “Não é a Comissão da Verdade, com sete membros e com
o trabalho que ela fizer, que vai determinar isso. É um movimento muito mais
amplo de opinião pública”, assegura.
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