Em agosto de 1981, o
jornal Diário Popular tinha a matéria de capa que pedira aos infernos. Uma
senhora fora encontrada morta em seu apartamento, na Rua Ermelino de Leão,
Centro de Curitiba. O porteiro sentira falta da moradora, chamou a polícia e a
imprensa veio atrás. A foto da “falecida” saiu sem pudores, na cama, em
camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da imprensa policial.
Houve quem não gostasse, com punhos e coração.
A vítima se chamava
Enedina Alves Marques, tinha 68 anos e fora a primeira engenheira negra do
Brasil. Morreu de infarte. Indignação. Seus companheiros de ofício fizeram uma
grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou. Afinal, as
vitórias de uma mulher negra e pobre que figurou entre os seletos bacharéis de
Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria constar nos anais da República,
e não na manchete sanguinolenta de um tabloide.
Seu resultado.
Enedina virou placa de rua no Cajuru. Ganhou inscrição de bronze no Memorial à
Mulher Pioneira, criado pelas soroptimistas – confraria de caridosas da qual
participou. Mereceu biografia assinada por Ildefonso Puppi. Seu túmulo, no
Municipal, é mantido com respeito pelo Instituto de Engenheiros do Paraná.
Tempos depois, batizou o Instituto Mulheres Negras, de Maringá.
Aos poucos, descansou
em paz. Paz até demais. O centenário de nascimento de Enedina, em janeiro deste
ano, passou em branco. Poderia ter sido celebrado pari passu com o de sua
contemporânea, a poeta Helena Kolody, com quem, suspeita-se, teria estudado.
Sim, antes de engenheira foi normalista e civilizou os sertões de Rio Negro e
Cerro Azul, saindo das lides de doméstica e de “mãe preta” para a de titular de
uma sala de aula.
Eu mesmo, confesso,
nunca tinha ouvido falar dela até semana passada, quando meu vizinho, Darcy
Rosa, estufou o peito para contar que tinha trabalhado com Enedina na
Secretaria de Viação e Obras. Publicamos a declaração. Foi o que bastou: súbito
vieram mensagens revelando a catacumba onde se reúnem os cultores dessa mulher.
O cineasta Paulo
Munhoz prepara um documentário sobre ela, em parceria com o historiador Sandro
Luis Fernandes (foto). A casa de Sandro, no São Braz, virou um pequeno memorial
de todo e qualquer documento que traga informações sobre a engenheira. São
raros, dispersos e imprecisos. Bem o sabe o estudante baiano Jorge Santana. Há
dois anos, ele pinça toda e qualquer pista sobre Enedina para uma monografia no
curso de História da UFPR. A pesquisa promete. Há fortes indícios de que
Enedina sofreu perseguição racial nos bastidores da universidade.
Formou-se aos 31
anos, sem refresco, depois de uma saga nas madurezas. Vingou-se ao se
aposentar, na década de 1960, como procuradora, respeitada por sua contribuição
à autonomia elétrica do Paraná. Conheceu o mundo. Morava num apartamento de 500
metros quadrados. Impôs-se entre os ricos por sua cultura, 12 perucas e casacos
de pele. Desconhece-se que tenha feito odes feministas ou em prol da igualdade.
Ou que fizesse o tipo boazinha para ser aceita. Pelo contrário. Talvez Enedina
tenha sido mais admirada que amada. É o que a torna ainda mais intrigante.
As pesquisas de
Sandro e de Jorge – ambos negros – já tiraram Enedina do campo dos panegíricos,
que se limitam a pintá-la como alguém que venceu pelo próprio esforço. É um
discurso bem conveniente, como se sabe. Tudo indica que não se trata de uma
biografia isolada, ainda que pareça.
A mulher baixinha,
magérrima e durona sabia se impor entre os homens – com os quais gostava de
beber cerveja. Enfrentava a lida nas barragens como um deles, armada se preciso
fosse. É uma heroína perfeita para um longa-metragem. Nasceu de uma gente
humilde do Portão. Era única menina numa casa de dez filhos. A mãe, Virgília, a
dona Duca, ganhava uns trocos como lavadeira. O pai, Paulo, está na categoria
“saiu para comprar cigarros”.
Mas não é tudo.
Enedina teria feito parte de uma rede de resistência da comunidade negra
paranaense, pré-Black Power, da qual pouco se ouve falar. As vitórias que teve
desmentem a propalada passividade desse grupo diante das migalhas que lhe foram
reservadas. O destino dela teria mudado ao cruzar com a família de Domingos
Nascimento, negro de posses da Água Verde, e com os Heibel e os Caron, brancos
progressistas que acabaram por se tornar os seus.
Nesses redutos não
teria encontrado apenas um horário para estudar ao lado do fogão de lenha. Ali,
suspeita-se, passou de Dindinha, seu apelido, a Enedina, a primeira engenheira,
mas também uma das primeiras negras de fato alforriadas de que se tem notícia.
Eis o ponto.
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