“Aquela terra é um
quilombo”. A frase sai com força da boca de Maria de Jesus Marcondes dos
Santos, que completa 86 anos no próximo dia 13 de maio – 125.º aniversário da
assinatura da Lei Áurea. Moradora da cidade de Castro (Campos Gerais), ela
lembra com saudade dos tempos em que vivia entre as árvores frondosas da
Comunidade Remanescente Quilombola (CRQ) Serra do Apon, distante cerca de 70 quilômetros de
Castro.
Depois que pessoas de
fora do antigo quilombo começaram a ocupar parte do território sem pedir
licença, ela teve que deixar a terra que pertenceu aos seus avós devido à
situação de miséria em que vivia. Há cerca de 40 anos morando numa casinha
simples da Vila Rio Branco, é com “vontade de voltar” que ela recebe a notícia
de que deve se realizar, na primeira quinzena de abril deste ano: uma reunião
para discutir a devolução das terras do Apon (ou Apã) para a comunidade fundada
por volta de 1865.
A audiência pública,
ainda sem local definido, tem por objetivo mostrar o andamento do processo de
reconhecimento do local como antigo quilombo. “Já temos a certificação da
Fundação Cultural Palmares [órgão vinculado ao Ministério da Cultura] e também
já está aprovado o relatório antropológico, que atesta a origem quilombola da
Serra do Apon”, explica Roni Cardoso, representante – em Castro – da Federação
das Comunidades Quilombolas do Paraná.
Só que esse relatório é
apenas o primeiro documento de uma série de outros – como o laudo
agroeconômico, laudo topográfico – que compõem o Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID), elaborado pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), explica Cardoso. “Todo o processo de
reconhecimento ainda vai levar mais de três anos, pelo menos, e pode ser
contestado pelos moradores confrontantes do quilombo. Queremos deixar tudo
claro na audiência”, salienta.
Uma vez concluído o
processo, os moradores do Apon poderão ter um título coletivo de propriedade,
pertencente à associação que será formada pelos moradores. Para muitos dos
descendentes de africanos escravizados em fazendas do entorno, será o primeiro
documento que comprova vínculo com o pedaço de terra que ocupam há tanto tempo.
A falta do documento de propriedade tem causado uma situação de pobreza preponderante
entre as mais de 50 famílias da localidade. “Como o local é de difícil acesso,
com estradas em condições muito ruins, a situação de isolamento continua até
hoje. Ao longo dos anos, sem poder comprovar a propriedade das terras, os
quilombolas viram seus pedacinhos de chão serem espremidos pelas grandes
fazendas”, afirma o perito agrário do Incra, Cláudio Luiz Guimarães, que está
trabalhando no processo de reconhecimento da Serra do Apon.
Produtores não conseguem
financiamento
Uma grande dificuldade
enfrentada pelos quilombolas, segundo o perito agrário do Incra Cláudio Luiz
Guimarães, é a dificuldade de acesso a mecanismos de apoio a pequenos
produtores, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf). Para conseguir esse tipo de financiamento, o agricultor precisa
comprovar algum vínculo com a terra (posse ou arrendamento, por exemplo). No
entanto, segundo Roni Cardoso, representante da Federação das Comunidades
Quilombolas do Paraná, em Castro, uma pequena minoria dos produtores conseguiu
algum benefício do Pronaf. “A maioria produz apenas para sua subsistência”,
ressalta.
É o caso de Aníbal
Machado de Araújo. Aos 90 anos, ele planta “um pouquinho de milho, feijão e
mandioca” no seu pedaço de chão de menos de um hectare. Aníbal não tem
ancestrais ligados à história do Apon, mas é casado com a descendente de
quilombolas Maria de Lourdes Rodrigues da Silva, de 45 anos. Ela nasceu na
comunidade e lamenta a situação de abandono do local. “Estamos longe de tudo e
nunca tivemos apoio financeiro de governo. Nossa única renda é a aposentadoria
de um salário mínimo do Aníbal. Mesmo assim, a gente consegue não passar fome”,
assinala. A família já está acostumada a produzir apenas para o próprio
sustento.
“E essa é a realidade
das outras famílias também. Eles não têm muita terra e precisam aproveitar bem
o pouco que possuem”, afirma Arnaldo Panzarini, técnico responsável pelos
atendimentos a comunidades quilombolas da Empresa Brasileira de Assistência
Técnica e Extensão Rural (Emater-PR) de Ponta Grossa.
“Nosso trabalho consiste
em visitas semanais às comunidades quilombolas da região dos Campos Gerais –
inclusive o Apon – e em conseguir mudas de plantas com as quais eles já estão
acostumados, como milho, feijão, mandioca e algumas árvores frutíferas, além de
ensinar formas de manejo que garantam uma produtividade melhor”, completa.
A entidade já estuda
montar equipes completas voltadas exclusivamente para o trabalho em comunidades
tradicionais, como quilombos, faxinais, vilas de pescadores, entre outras.
Segundo o técnico de desenvolvimento social da Emater-PR em Curitiba, Sérgio
Schlichta, a empresa deverá começar no mês de julho deste ano um processo de
contratação de pessoal para essas novas equipes, que contarão, inclusive, com profissionais
da área de antropologia.
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